domingo, 7 de setembro de 2008

Dulcíssima

Certo décimo segundo, a sofrer a praxe que sofrem os estudantes deslocados, houve uma senhora Dulce, de doce, que me acolheu como uma mãe.

_ De certeza que nos vamos dar bem. Ela até parece sossegadinha e tudo! E já agora, menina, sabe porque é que me chamo Dulce? Porque sou doce!

E foi amor à primeira vista. Eram braços abertos ao Domingo à noite e abraços apertados à sexta à tarde. Ajudava-me a carregar as tralhas

_Tanta fruta menina!
_ Largue isso, dona Dulce, que não tem idade para essas coisas!

Contava-me como tinha sido o fim-de-semana

_ Sempre essa pergunta! Com esta idade já não há muitas coisas novas para fazer...E o seu?
_ As coisas boas de sempre_ família, amigos e almoço de domingo com direito a pudim de côco! Como vê também não inovo.

E deixava-me no meu quarto, a gerir a ideia de fazer tanta coisa pela primeira vez, com uma catarata que já esguichava desde o rés-do-chão ao segundo andar, depois lá se continha 5 minutos e rebentava assim que me sentia sozinha.

A Dona Dulce tinha um pequeno problema de audição. Na verdade ela tinha muitos problemas. Os pólipos no intestino,

_ Sabe, menina, aqueles cogumelozinhos?
(Na altura não sabia. Agora sei demais. E um dia vou-me fartar de saber.)

A voz nasalada porque não sei quê, a hérnia discal que lhe apanhava uma perna,

_ E esta, menina. Esta é a pior_ uma cicatriz a meio do peito_ bem que me tentaram roubar o coração! Mas esse não roubam.

De doce, de facto. Mas conversas nostálgicas era quando falava do seu marido, falecido há umas décadas.

_ Eu e o meu marido tínhamos uma boite. Mas uma boite de gente fina!

E mostrava-me os guardanapos de linho fino bordados, alguma loiça, algumas roupas, algumas jóias, alguns encantos... Dentro de armários velhos e bafientos, cada objecto lá tinha a sua história para contar.

_ Este coração deu-me ele nos nossos 25 anos de casados. E a colecção de luvas, menina!
(Sabia lá ela a minha tara por luvas!)
_ Estas são para usar à noite, estas de xadrez mais informais. Vejo que gosta! Escolha um par!

E foi assim o meu décimos segundo, pelo menos 10 minutos por dia. Deixei de ter o restaurante quatro (oito) patas aos dias da semana, para aprender receitas de bacalhau com natas e claras em castelo e cordon bleu da boite.

_ Um dia faço-lhe um arroz doce daqueles que não se comem cá em Lisboa!

E fiz! E gostou... E foi com papas e bolos que lhe ganhei a confiança. Não foi preciso esperar muito para vir perguntar-me o preço que devia levar às clientes por subir as bainhas das calças.

_ Ora, bainhas...
_ Já vi que não percebe muito do assunto!
_ Venha cá e veja isto!

No tempo em que eu ainda tinha tempo, fazia biquinis e bijutaria de renda.

_Ah, mas que rosetas tão bonitas!
_ Um dia faço-lhe uma bonita. Se não a puser no cabelo, guarde-a na carteira! E as bainhas...7 euros!

E a amizade tornou-se rotina, mesmo nos dias mais difíceis.

_ Filha, ficou acordada até tão tarde! Vi a luz pela janela do quarto.
_ Há-de servir para alguma coisa, Dona Dulce! Não tenha pena!

Ou no domingo em que vim com uma constipação e tosse arrancada do fundo dos pulmões.

_ Faço-lhe um xarope de limão com açúcar e uns emplastros de álcool no peito, esta noite. Diga-me quando se for deitar! Mas tenha dó de mim! Veja lá as horas!

Passados dois dias estava como nova...
Seguiram-se os exames nacionais

_ Está tão magrinha menina! Oxalá que lhe valha o esforço!

E passaram-se (alguns...) maus momentos. Que bom que a dona Dulce era quase surda e não ouvia algumas cataratas mais turbulentas. É que se me apanhasse em flagrante delito, faltavam-me ainda uns 70 anos para que as cataratas corressem para rios e os rios para riachos e riachos para canais e para pequenos fios de lágrimas que abrilhantavam a face, como a sua por detrás dos óculos pesados, fazendo caminhos por entre rugas de pele.

Não sei de si. Sei que aquele quarto sem estores e com o vento que entrava pelas frestas das janelas já não é seu. Provavelmente já não tem espalhadas pelas paredes as molduras com fotos do seu casamento, do casamento do seu filho, do baptismo do seu neto e da namorada dele (que talvez fosse menos neta que eu). Não deve ter as suas jóias, as suas luvas, os seus guardanapos de linho. E de certeza que se tocasse à campainha não me afagavam o cabelo e assim que virasse costas não correriam fiozinhos de luz pelas faces.

Um dia levo-lhe uma roseta de renda e ovos de galinhas de verdade, como fazia a cada domingo. Oxalá ainda esteja entre nós...

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Ode à insónia

Ó insónia desgraçada
Que vens de madrugada raptar-me de Morpheus.
Tirando-me a almofada e a boca arregalada beijando os lábios seus.
Tu que por esta chuva vieste e por este cinzento cipreste
Te entranhaste em mim. Com tua voz soprana
Roubando-me sofá e cama, esteira, cadeira, coxim.


E até no mais sadio sono e merecido descanso
Eu ouço o teu sonido
Abanando-me os tímpanos, dá-me cabo do caracol
E dos ossículos do ouvido.


Esgoto o stock da Lipton e a naturista da rua
Bate palmas quando entro.
São infusões "Boas noites", ervas daninhas sonoríferas
Sem parar, pela noite dentro.
E nem o mais potente xarope
ousa fazer-me bocejar!
A raíz de Valeriana e o placebo Valdispert é só para o sangue adoçar.

O que há aí de sedativo, antefiáltico, barbitúrico
Faz-me cócegas no pé.
Também já tentei com tinto, branco, verde e às bolinhas
E a garrafinha de rosé.
É este um grande nó cego
Que dou desde há muitos anos
e não ato nem desato.
Nem picada de tzé-tzé
Num dia de desespero
Em expedição pelo mato.

Nem o mais ranhento, lamechento, pardacento
romance ou tratado.
Já lá fui com triptofano, hidrato de carbono e banho quente,
E sempre o mesmo resultado!

Mas métodos tradicionais imperam
E há-de chegar o dia
Da bela da marretada.
E orgulhosa de mim,
Nem que veja passarinhos
é um desforro nu e cru.
E se tal não funcionar faltam-me ainda a bruxa
dança da chuva e o voodoo.

Aceitam-se voluntários para a marretada! Não vale empurrar!