terça-feira, 2 de novembro de 2010

Das drogas (extraterrestremente falando)


Extraterrestremente falando, estas coisas não me indignam_ paralisam-me. E estou bem consciente que estás a ler-me_ tu com quem partilho meia dúzia de copos alegres, tu com quem partilho intervalos de estudo "a fumar" e tu que um dia até me deste um workshop de ganza. Escolhas são escolhas e sempre recebeste bem as minhas, tão diferentes das tuas. Mais estranho que isto é impossível_ desde miúda. Nunca fui de muitas gomas na lojinha dos doces nem de cartas Majic e sempre tive um certo fascínio por gostos extra-terrestres ou pelo menos gostos-extra-o-nosso-grupo. Sempre gostaste de mim a engarfar saladas quando toda a gente abocanha hambúrgueres, a bebericar chá quando toda a gente emborca imperiais e a mascar pastilhas elásticas quando toda a gente fuma. Tu investes no tabaco e eu invisto nas sojas e nos tofus! Gosto mais de ti assim do que de quem tem os mesmos hábitos que eu, bem o sabes. Sabes a minha opinião acerca dessas coisas todas e, com o devido respeito ao teu pulmão, acho esta lei do tabaco a melhor coisa do mundo a seguir ao micro-ondas!

Paraliso a pensar quem de nós é mais anormal. Não é que isto tenha alguma importância mas qualquer comportamento (aparentemente) patológico que se repita mais vezes do que o normal para uma ocasião esporádica é, para nós teus amigos, um vício. Concebo para os meus botões como uma dependência. E uma dependência é sempre patológica. Ora se tu tens algum tipo/grau de dependência, contigo está para aí 80% da população da nossa idade. Uma anormalidade, percebes? Dos restantes 20%, só uma ou duas é do nosso grupo de amigos, o que me torna uma grande anormal, estatisticamente falando. E aqui está a explicação para a minha dúvida existencial.


Dentro da minha anormalidade exuberante e pavoneante de investir a mesada no Celeiro e no Pingo Doce e bambolear a rabiola no Holmes Place, sei tão bem como tu (ou sei um pouco mais apenas) que essas cenas não te fazem nada bem! Não te posso apratalhar de alface nem regar com chá verde e tenho inclusive alguma dificuldade em, falando a nossa língua, explicar-te como me preocupo contigo. Talvez o que nos distinga, além da minha teimosia natural de ser x quando todos são y, é que eu já vi gente a morrer e mães a chorar e famílias destroçadas. Talvez tenha sido isso a amadurecer as minhas escolhas e a tornar-me uma extra-terrestre mais consciente. E, ouve-me agora, não quero isso para ti e não acho que devas fazer isso a quem gosta de ti, ponto.


Sou apologista de que mais do que pessoas individuais, somos peças de puzzles. Se não o fazes pela tua saúde, pensa nas peças que tens à tua volta e pensa na falta que lhes fazes.

"_ Ah, mas é só para relaxar".
_ És muito relaxado, tu.
"_Tu é que és muito contraída!"
_ Tudo bem. Mas quando quero descontrair vou correr!



E tu? Para que lado é que descontrais?

terça-feira, 20 de julho de 2010

Clube das aves raras


A vantagem de se vir deslocada da terrinha para a cidade, numa rota migratória que se repete todos os anos, mais semanal para uns, mais entre estações para outros, é encontrar outras aves com as quais nos identificamos. Partilhamos o mesmo habitat académico mas as espécies migratórias são variadas, uns patos, umas rolas, uns pombos, umas andorinhas, umas aves de rapina. E neste desfile de penas e de garras, natural é que os bichos se agrupem por espécies. E é assim, em todo o mundo: patos com patos, pombos com pombos, rolas com rolas. Uns dormem assentes num pé, outros dormem com o pescoço virado para trás, há quem chilreie, quem grasne, quem gorgoleje, cacareje, trine, grojeie, crucite, gralhe, grite, pie, rulha, cante, glotere, parle, guinche, estridule! Quem se pavoneie, se sacuda, se cate, se bique, se roce. Uns em grandes voos a céu aberto, outros aos saltinhos miúdos, uns a bicar pedrinhas, outros a bicarem-se uns aos outros. Uns tucanos exóticos, uns zelosos pelicanos, araras mais coloridas, mochos velhos, corujas sábias, de tudo.
Fora desta classificação, fui encontrando por aí umas aves raras. Não as via particularmente encaixadas em nenhuma destas sociedades, embora sejam umas mais sociais que outras, muito ao estilo ave rara migratória, de andar por aí meia vadia a pavonear as penas aberrantes. É uma ave difícil, mas só uma santa raridade para penetrar nestas sub-sociedades, também. E formamos, agora, uma espécie de clube. Mas uma coisa muito tu-cá-tu-lá, qua-qua, de nos irmos catando aos pares, que não há ave que nos cate melhor as penas que aquelas com penas igualmente atípicas. Fugimos todos os dias à sentença de Darwin, que não temos propriamente as características mais propícias à sobrevivência e temos os nossos caprichos alimentares. Não nos serve qualquer grão! Quanto a isso, como diz o mocho mais deliciosamente difícil de aturar que conheço, é a sentença de carregar um cérebro que anda a mil à hora!
E para ti, que te dizes ofendido quando te agradeço por me catares mais uma vez, esta asa está sempre aqui!

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Mulheres-a-dias


Às vezes penso que dedico demasiado tempo a pensar em coisas que não valem a pena. É que muitas vezes, no meu dia-a-dia, sou confrontada com a pergunta como é que uma senhora deve fazer isto? ou o que faria nesta situação uma mulher a sério? ou sou mesmo uma mulher a sério? ou o que raio é que é o toque feminino que dizem que falta aqui?. Isto até pode parecer ridículo mas o que é facto é que me chega a tirar o sono de vez em quando. E não me refiro à dicotomia perna aberta/perna cruzada (obviamente que depende do que tenho vestido e de quem tenho à frente), ao volume e colocação da voz (Deus deu-me um megafone mas tento controlar), ao quão expressiva (e espalhafatosa, por vezes) deve ser uma conversa, nem a certos tiques de homem que insisto em preservar, como coçar a barba e as partes baixas (é mentira! só para ver se estavam com atenção!!).

Sempre fui muito pouco formal e gosto pouco de regras. Quero dizer, eu até posso segui-las mas é porque estão tão agarradas a mim que me são naturais. Agora cozinhar porque sou uma senhora, cruzar a perna porque é mais elegante, achar inadmissível que os homens da casa se passeiem de boxers porque me faz confusão à vista (faz-me mesmo espécie, é diferente) acho ridículo. Faço o que de mais urgente me dá na real gana e no que toca a ser uma senhora, talvez a única coisa que me custe seja mesmo controlar o meu megafone. Vinho tinto sim, muito obrigado; carro nas mãos sempre que possível; café a sós com um amigo sem problemas (e sem problemas para o namorado, também!); abraços à homem e calças a cair pelo rabo, assim à trolha. E nisto, acho-me mulher. Sempre me achei muito mulherzinha mas o problema é que já não sei bem o que a sociedade exige que as mulheres sejam.

Porque cada vez há mais mulheres-a-dias, uns dias mulheres, noutros dias nem por isso, de relações superficiais e físicas, muito sapato italiano e perfume francês, muito sexo e a cidade. Não é que tenha alguma coisa a ver com isso, até porque a culpa não é, de todo, delas. Lá tiveram o azar de se meterem com um banana e ficaram a pensar que todos os homens são bananas ou que, por outra, a única coisa que um homem tem é...esse fruto. Por outro lado há escritório e trabalho e prazos e obrigações...e provavelmente de outro lado uma barriguita a crescer, uma mama para dar, um filho para criar, um pai que não existe...uma casa para limpar, uma refeição para orientar, um pai ou uma mãe doente para ajudar...e depois há amigas e compras e uma necessidade realmente estúpida de querer parecer sempre bem, impecável, sem olheiras, elegante, passada a ferro e viçosa que nem uma alface. Tretas! Ou os XY se fazem homens ou deixa de haver mulheres "como deve ser", ainda que isto seja deveras discutível.

E depois há a moda de querer parecer mais mulher: tendências à anos 60, com rendinhas, coisinhas cintadas, todo o aspecto de uma dona-de-casa daquelas dos anúncios publicitários da farinha e do pudim mas falta realmente o tacho e a máquina de costura. Falta, realmente, o amor. E falta, realmente, a mulher ali. Isto para não falar de mamas de silicone e cirurgias aos pés para caberem num 36 biqueira fina.

É possível que esteja a ser radical. E demasiado tradicionalista. E essas coisas todas, porque a minha mania de mulherzinha faz-me franzir o sobrolho perante estas modernices. Mas...e vocês? O que é para vocês uma mulher como deve ser?

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Vicissitudes de quartanista

Abateu-se sobre mim uma profunda consciência de fim de dia. Não é tristeza, nem mágoa, nem saudade. Uma profunda consciência e um ligeiro (não tão supérfluo quanto isso) cansaço. Hoje foi o meu último dia de estágio em hospital. Uma saga que começou a medo (e mal) no ano passado, e que continuou (de forma muito tenra) este ano, seguindo-se o resto do curso, o resto da vida nestas andanças.

Não querendo tornar este espaço um pseudo diário (pseudo) médico, e só porque esta mágoa/consciência/saudade ultrapassa o meu limar de excitabilidade criativa (que anda escassa)_ esta vida cansa-me, mói-me, desgasta-me, endurece-me, mecaniza-me, envelhece-me, faz-me varizes e celulite mas no fundo faz-me bem.

Porque este ano me conheci melhor, porque conheci melhor algumas pessoas, porque me dei mais a conhecer, porque conheci um pouco mais da realidade, da pobreza, da miséria, da doença, da saúde, da morte, do nascimento, da verdadeira felicidade e da verdadeira tristeza. A diferença está no saltitar e no arrastar. Umas vezes aos saltinhos nas crocs cor-de-rosa, outras vezes arrastando-me como se o estetoscópio pesasse mais do que o meu próprio corpo.

Por todas as alminhas que contribuíram para as histórias clínicas, pelos fantasmas que não se sabia como estavam vivos, pelas esposas ou maridos que levam a rigor o que juraram de estarem presentes na doença, pelas jovens que se apaixonam por rapazes com paralisia cerebral, pelas senhoras bem dispostas que põem óculos de sol quando lhes dizem que têm de fazer quimioterapia, pelos potesinhos de mel caseiro e queijinhos da serra e pelos feitos que os trouxeram, pelas senhoras muito doentes da idade da minha mãe e da minha avó (estava sempre a pensar nisto), pelos funcionários surdos-mudos e pela sua desenvoltura, pelos pais "primíparos" e pelo "faz-força-filha-mas-não-vou-olhar-muito-aí-para-esse-sítio!", por cada gravidez em cada casal infértil, pelas avós aos quarenta anos que dão a mão às filhas naquelas horas complicadas,

vale a pena.

Com a bata um pouco gasta na zona do rabo (paredes! e não cadeiras), uma técnica inigualável de segurar os telemóveis na orelha dos cirurgiões enquanto estão a operar, todo um conhecimento aprofundado em meias de compressão elástica e rituais e porcarias para a circulação, um passo ainda mais acelerado e muita manha com os botões da bata que devem ser abotoados (depois de ter levado com toda a espécie de fluidos), de barra de cereais num bolso e garrafa de água no outro, se é "aquilo" que eles fazem que é ser médico, gosto disto sim senhor!

Há mais disto em Outubro ou mesmo no Verão, num estágio de férias de consulta do adolescente, que deve ser o cúmulo da criatividade lírica!

quinta-feira, 10 de junho de 2010

De coração (e intestinos) nas mãos

Numa bela manhã solarenga, ia eu contentinha, tralala, ver uma cirurgia de uma suposta hérnia, tralala, coisa banalíssima mas que ainda não tinha visto. Incisão na pele, tralala, afastadores para espreitar o buraco, tralala e ops! Um novelo de vasos de aspecto duvidoso, uma mão não chegava para o agarrar. De sobrolho franzido, lancei o olhar de esguelha por cima da máscara à minha colega
_ aquilo é...?
_ ali naquele sítio..._ de sobrolho igualmente franzido. Já te conheço!
_ pois!
Se não nos falhava a anatomia, aquela bola não era suposto estar ali. E o cirurgião, em tom quase profético:
_metástase!
A anestesista desviou a atenção dos seus entreténs e espreitou por cima dos óculos na ponta do nariz. O enfermeiro que andava a cirandar num rodopio de passa caixinhas, traz-me pinças, mais soro parou e eu achei estranho aquilo. A facilidade com que uma metástase do tamanho de uma bola de ténis passa por uma herniazita! É mais ou menos com a mesma facilidade com que se tirou a mama que, noutro dia, à minha mãozinha destreinada não denunciava grande coisa, muito menos um carcinoma invasivo de mau prognóstico.

E ainda meio incrédulos, a passar as mãozinhas de luva na bola, a sentir-lhe, digo eu, o terror:
_ então...é melhor analisar os intestinos.
E foram metros de gente cá para fora, pintados às bolinhas rosadas, o que me remeteu de novo para o atlas de anatomia, de sobrolho franzido:
_aquilo..._ para a minha colega.
_é._de sobrolho igualmente franzido.

Aí encolhi-me um pouco. Eles pareciam entretidos com as bolinhas, diria até que por baixo das máscaras escondiam aquele meio sorriso (que até é feio chamar-lhe isto) de quem está entretido e interessado com qualquer coisa nova.
_vêem, meninas, isto é uma carcinomatose peritoneal. Se passarem o dedo é rugoso. Está espalhado pelos intestinos e mesentério.
Nesse momento teleportei-me para o livro de Anatomia Patológica e...encolhi-me de novo. Entre a minha habitual hipotensão postural e hipoglicémia matinal, tive pena da senhora. Veio cá por hérnia e leva um cancro disseminado sabe-se lá de onde.
_se for ovário_ diz o cirurgião, ainda a passar o dedinho de luva nas rugosidades, aposto que com aquele trejeito de lábios (sorriso aqui fica, definitivamente, mal)_ com quimioterapia ainda pode ser que responda.
_mas que estranho_ o outro cirurgião_ sem emagrecimento, sem mais queixas. Que chatice_ e estala a língua. E aqui encerrou a converseta e deu início ao corta-bola,-arruma-intestino,-lava-com-soro,-compõe,-sutura-agrafa, naquela precisão mecânica, comunicando entre eles com aqueles sinais de sobrolho por cima da máscara, que começo a aprender.

Menos graça ainda teve no outro dia, na enfermaria, ver a dita senhora, depois de operada, sob tutela de umas enfermeiras simpáticas, a desinfectarem a sutura e fazerem-lhe o penso. E é que a senhora, bem dispostona, com o seu ar setentinho, falava de netos, de filhos, de comida, de coisas alegres.
_fui operada com 40 anos, agora sou operada aos 80. A próxima vez, já disse aos meus netos, é só daqui a 40 anos!
E a minha colega gracejou.
_aprendam, meninas, aprendam. Para se fazerem sôtoras como estas senhoras. Ainda têm muito que palmear! Ai minhas ricas meninas!

Não consegui sequer esboçar um sorriso, acho mesmo que não tive reacção. Sensação mais estranha que dissecar as pessoas pelas atitudes, é conhecer-lhes as entranhas melhor ainda que o carácter. A sensação de falar com um fantasma bloqueou-me o diálogo e…hoje falo-vos de coração nas mãos…um dia, quem sabe, pode ser que segure melhor intestinos do que corações. A ganhar calo emocional…

domingo, 9 de maio de 2010

44

É mais ou menos esta a sensação, 44. Por ser capicua também, por ser o dobro (mais 50%, 33, seria pouco, e mais que o dobro é exagero), por também ser um número redondo, como o que o 1988 documenta.

É mais ou menos 44. Até aos 10 já devia contar uns 15 e aos 20 estava certamente nos 30.
Dá-me uma média de 18 horas a sério por dia mais umas 20 horas de insónias por semana. Umas 6 horas de trânsito, outras 4 horas de fato-de-treino e umas 6 horas de aulas teóricas (o meu défice de atenção...) e mais 2 se for ao cinema (estando, como é hábito, desatenta). Reconheço que não relaxo, que não desligo, que não deixo (mas tento) de correr. Que nem consigo escrever sem pressa, que não sei cozinhar sem tudo voar à minha volta, que não sei estudar um capítulo sem antecipar o outro, que nunca chego antes da hora, que ando sempre a penar por um intervalo de 3 a 20 minutos. Esses 17 minutos são gastos e duplicados, consumidos no metabolismo que seria em 40 tão minutos como eles mas mais moles. Mas eu mole não sou, tirando em alturas de exames, em certas partes do corpo.
E estaria eu 50% mais velha, pelas minhas contas, se ainda aos 20 parecia ter 30 e aos 10, e isto chegou a ser físico, com pêlos e pendurezas de mulher a nascerem-me pelo corpo, tinha, garantidamente, 15 anos. Estes dois anos, ou talvez os últimos quatro, fizeram o favor de me acrescentar mais umas pendurezas cá pra dentro. E não é que, dentro da minha casquinha jovial e da minha habitual distracção, parecem intimidar pendurezas biologicamente mais velhas! E eu continuo a achar-me tão pequena...pequena e um pouco cansada. Cansada (não contrariada).

Ainda assim, e porque amo a minha correria, e porque amo quem quer correr comigo, e porque amo aqueles com que me cruzo, quero pelo menos chegar aos 66. Já tenho anos suficientes disto para poder dizer que gosto é de andar cansada, e que é cansada que sinto a razão que me faz ser. Menos mal, dizem vocês, não sei pra que é que lhe deu para ali hoje!

O que me fascina, depois de muito tempo por aí a matutar (com um género de enrolo de carne, daquelas rijas que nem cornos_ hoje faço anos, desculpem lá_ tipo a pele do tomate do boi, no canto da bochecha, a moer, a moer, a moer)_ é que foi preciso chegar aos 22 anos biológicos para ver que a vontade de nascer é bem maior do que a fatalidade e incidentalidade da morte, principalmente aquela que não se espera para tão cedo.

E aí, ultrapassando o quase milagre que é:

o óvulo sair à rua quando as mães não têm dor de cabeça, ou quando o pai não chega tarde a casa, ou então é um óvulo esperto e sai ao fim-de-semana (ou quando ganha o benfica!)

o útero estar fofinho e não se arma em mauzão e dá cabo de vinte e três cromossomas com cheiro a homem, numa casinha tão fofa e feminina, depois de tanto trabalho a atapetar isto e vem-me uma carrada de girinos pisar o tapete!

os girinos são de uma boa fornada, o pai não anda de mota nem abre a pernoca à lareira, e não andou nos copos nos 70 dias antes de festejar com a Maria

o piqueno lá se alapou no fofinho do útero e foi crescendo, crescendo, apontou a cabeça para baixo (e se não apontou, nasce-se de pés e de nádegas e de queixo; aquilo quase que já só escorrega) e trungas cá para fora, a abrir aqueles pulmões e a sentir aquela que dizem ser a pior dor de todas que um humano pode sentir.

E só aqui, quando se vê aquelas criaturas a chorar, depois de passados tantos obstáculos estatísticos, e graças a Deus que houve festa naquela noite (e graças a Deus que a vida é assim) é que se percebe. Somos feitos para isto mesmo: escapar aos obstáculos estatísticos e viver. A perda de um homem é ,diria eu, estatisticamente discreta perante o quase milagre biológico que foi para ele nascer.

Pensem nisso. Se mo tivessem dito há mais tempo talvez tivesse só 33!

domingo, 2 de maio de 2010

Dias da mãe é quando um filho quer

Maiiiim!!

Gosto de ti a pendurar cortinados. Escadote acima, escadote abaixo. Estica o braço, estica o pano, corre o pano.
E a chinelar pelo corredor. Treca treca treca. "Ó Paulo!", treca treca, e lá passa mais uma peça de roupa, e lá arruma uma ou outra coisa, ou muda-lhe o sítio para arrumar mais tarde.
E eu, suspensa na minha quietude, lá andava atrás de ti ou contigo, no teu treca treca treca de todos os dias.
Não me falaste muito do teu treca treca culinário, mas aposto que ainda fizeste uns quilómetros comigo na cozinha. Esse teu livro de culinária, amarelo e consumido pelo tempo, já me é familiar há muitos anos. Acho que te dei uma ajuda a recortar as receitas das revistas!
Andávamos floridas e vaporosas com aqueles vestidinhos frescos e práticas de sapatos baixinhos. Nunca fomos muito de saltos altos, é de família! O pai diz que eras a grávida mais bonita lá do sítio! Claro que sim! A tua permanente volumosa ao vento fazia inveja a qualquer alminha gestante!
Mas o melhor momento do dia era quando nos traziam aqueles alguidares de laranjas. E então sentava-mo-nos de pernas abertas a devorar laranjas nas escadas. Gulosas!
Gostava quando me passavas a mão pelo pêlo, quando me besuntavas de creme para as estrias e dava cambalhotas de felicidade por não usares cintas! Como tu, também não gosto muito de apertos!
Lá dei mais uma cambalhota, uns pontapézitos meigos, e meti-me a jeito da porta de saída, que nove meses, e sendo muito tua filha, é demais para estar parada.
E acabei por sair, depois de me tocarem na cabeça umas 15 vezes, primeiro o médico, depois o interno, depois o aluno do 6º, 5º e 4º ano, isto umas duas ou três vezes, enquanto eu rejubilava no meio de hormonas e prostaglandinas, impaciente às cabeçadas durante quatro horas.
Lá te vi mais agitada que o normal. Deve doer, mas obrigadinho pela força! E foi roxinha que vim ao mundo, pelo que dizes. Nem chorei, nem esperneei e nem parece isso coisa minha! Pelo que consta nem tivemos muito tempo para olharmos uma para a outra. Fugiram comigo e fecharam-me numa caixa transparente, longe de ti e do pai, sem laranjas, sem treca treca e sem "Ó Paulo"! Acho que ficaste preocupada mas eu estava "na boa"! Dois meses depois andava de fato-de-banho, de colo em colo, em plena praia da Nazaré, olé!

Depois desta vivência tão agitada, seria impossível não ser como tu! Continuo a gostar do treca treca treca, jardim acima, jardim abaixo, do "Ó Paulo", do cheirinho na cozinha, das coisas gulosas, de me passares a mão pelo pêlo! Principalmente a última parte!

Dias da mãe é quando um filho quer!

domingo, 18 de abril de 2010

Do fundo

Sou tua amiga sim. Apesar da dor de horas e do horário desgrenhado, tens amiga aqui. Ao meu jeito, bem o sabes, sem telemóveis nem coisas grupais, que a dois é bom mas três, bem o dizem, já é demais.

Gosto mais de ti no estado puro, sem interferências do exterior. Gosto de te ir tendo, de vez em quando, no teu dia, nos nossos locais, e saber por onde andas, por onde tens parado, que coisas novas me contas, o que tens aprendido, o que posso crescer, hoje, contigo.

Gosto de ti principalmente por seres diferente de mim. E de ti, e de ti, e de ti. E de comparar-nos e somar sempre esta diversidade, que faz de mim bocadinhos de pessoas que vêm e ficam, outras que vêm e vão mas permanecem. Continuo a evocar o teu nome em conversas e a relembrar-te com o mesmo sorriso de há uns anos. Continuo a tratar-te pela tua antiga alcunha, apesar de estares mais magro do que nós! Continuo a temer a tua tendência para não gostares da vida e espero bem que me tenha sucedido alguém que te faça gostar mais dela. Continuo a achar que fazemos uma bela dupla, desde os tempos da Patrulha Pinguim. Continuo a achar que entre nós há qualquer coisa bem maior que a diferença dos caminhos que tomámos, que é tão só seis sétimos de vida juntas.

De ti gosto dos olhos verdes, principalmente a berrar cor e lágrimas. De ti dos pés pequeninos desinquietos, a serigaitar sempre. De ti do teu lado hippie
de dar restos de pão a patos lisboetas. De ti do lado de Solar dos Presuntos com um sentido crítico de cair para o lado. De ti e da tua bondade desinteressada. De ti e de me rir com as tuas aventuras em motas e bicicletas. De ti e das tuas cartas de Trivial Pursuit de bolso, para melhorar a cultura geral! De ti e da tua tendência de pores um -inho depois de todos os adjectivos. De ti, e também de ti e de ti. Alguns "tis" mas não muitos. Os que cabem bem debaixo da minha asa, no sentido mais maternal ou amigal da expressão.

E é assim, como sabes, se me conheces desde pequena, que levo as coisas e que TE levo_ a sério. E se me conheceste já grande, não grande coisa, é igual para ti. Isto de levar as coisas e levar-TE a sério tem o seu peso. Faz-me não gostar de quem te faz mal, faz-me ter medo do que te assusta e mesmo assim querer proteger-te. Quando me escasseias as palavras...dói-me. Quando reconheço que estás em onda de azar...dói-me. Quando dou por mim a lamentar, sem te aperceberes, o que te inquieta...dói-me.

E depois disto te digo: não tenho tempo para chatices. E mais importante_ não me interesso minimamente por isso. Gosto de ti, ponto final. E ando por aí de nariz no ar (muito mais de desatenta e distraída do que de empinado) a levar as minhas coisinhas a sério e de repente testemunho uma ou outra facadinha, que não é de todo novidade para mim, só me desilude do fundo do coração, e nem sequer precisa de acontecer comigo.

Seriamente na boa, sei que tens aí o meu bocado, que não to roubo nem invejo de outros porque esse aí, à nossa maneira, é meu. Obrigado.

sábado, 3 de abril de 2010

Resiliência

Gosto desta palavra. Desde pequena. Primeiro que tudo porque dá umas voltas giras com a língua _ re-si-li-ência_ e não tem érres pelo meio, o que me facilita bastante a dicção e eu gosto de dizer as minhas palavras preferidas bem ditas. Depois porque é daquelas palavras que, quando se dizem, vêm sempre acompanhadas de outras mais ou menos parecidas, candidatas a ser como ela, mas que nem pronunciadas mil vezes sílaba a sílaba hão-de ter o mesmo significado: resistência, força, por aí, e ela destaca-se. Gosto desta palavra e hoje lembrei-me dela, não sei porquê. Ando meia alucinada e devo ter ido busca-la a um texto qualquer que diz "paciência, resiliência e cansaço".

Ora, resiliência. É que eu às vezes digo as coisas com a perfeita noção que não entendi bem o que querem dizer. Resiliência era qualquer coisa que os metais tinham, se bem me lembro. Que dobram e esticam e encolhem e fazem trinta por uma linha deles e eles voltam ao estado normal. Resiliência, se bem me lembro dos tempos em que desenhava nos livros de filosofia, era qualquer coisa de luta interior com supostos pilares internos contra qualquer coisa má sem causar surto psicológico. E numa pesquisa rápida na net: armazenamento de energia numa situação de stress sem ocorrer ruptura, suportar traumatismos e recuperar apesar das lesões através de um jogo complexo de processos defensivos e factores de protecção internos e externos. Bonito.

Resiliência, resiliência, resiliência. Deixo as teorias da deformação e energias para quem se dedica a elas. Passo a pasta dos factores de protecção internos e externos e complexos intra-psíquicos manhosos para quem de direito. O que eu sei e tenho como experiência é que essa coisa de resiliência é uma bela treta! Nem energias, nem pilares internos, nem propriedades do arco da velha lhe valem e pessoa resiliente, mas resiliente à brava, é aquela que se deixa moldar (que remédio!) em plena tempestade (ou surto ou ruptura) e se torna, ela própria, a forma do(s) coice(s) que levou, e a mostra descaradamente sem vergonhas, mais amargura, menos amargura, mais ou menos cansaço, mais ou menos paciente, e tira partido disso.

Devo andar com cara de coice mas temos pena. Gosto muito de vocês na mesma, e agora de uma maneira diferente, diria com muito mais amor.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Calo emocional

Só porque hoje ganhei o dia...e reserva para mais umas semanas de marranço.

Ver um deficiente mental em cadeira de rodas, que mal se fazia entender, provavelmente da minha idade, acompanhado por uma miúda se calhar até mais nova que ele, deve ser irmã, pensei eu, até bonitinho, até aprumado, certamente um tipo inteligente, um gajo com uma cabeça absolutamente normal mas num corpo que é uma couve que se mexe, lá pelas palavras do sôtor.
_ Já agora, doutor_ isto dito com muito esforço_ podia escrever aí um papelinho a dizer que tenho incontinência urinária? É que só tenho 85% de invalidez e preciso de 90% para não pagar o imposto do carro.
_ Ó migo_ e coça a cabeça, e assoa-se com as mãos e limpa à bata, quase mais amarela que os dentes_ é a coisa mais fácil que posso fazer por si!

(ao menos isso!).

_ Obrigado...Já agora, sabe do meu problema de Andrologia...Até foi o doutor que me encaminhou para a consulta. Queria só dizer-lhe que estamos a tentar uma inseminação artificial_ e nisto olha para a suposta irmã, e é aí que me apercebo que os dois têm aliança!

Fantástico! Não consegui conter uma lavadela de olhos, que os meus estrogénios andam sensíveis.

E é assim...sinto-me a ganhar calo. Um dia falo-vos de pescoços de frango e cirurgias urológicas, num post mais animado!

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Post da tanga

Aproveitando os 10 últimos minutos da minha capacidade de verbalização (enquanto não mando pro bucho qualquer coisa que me faça dormir, que o meu João Pestana deve andar emigrado) lembrei-me de um tema_estúpido_ que era capaz de dar um post engraçado. Tangas! Isto veio em conversa num jantar, a que propósito não me lembro, e a conclusão a que chegámos foi: é uma coisa muito bardajona essa de andar com os fios à mostra, quase que pendurados nas orelhas.

Eu pessoalmente, que me encolho cada vez que deparo com tal cenário, acho francamente mais sexy, se é isso que se pretende, uma blusinha ou outra coisa que acabe em -inha, assim mais pro discretinha.

Acredito que haja aí mais gente com problemas sérios com cadeiras sem costas. Quem me entende são as vítimas de perna grossa e cintura fina que andam sempre com as calças pelos quadris, que alegam não gostar muito de cintos e cujos rabos gostam de andar à vontade!


Perdoai, senhores, qualquer coisinha!


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Imagem para sentir


Olha lá não caias...da sabedoria abaixo.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Como aproveitar meio dia de férias

Graças a Deus o meu meio palmo de testa serve para outras coisas sem ser estudar.

E não posso deixar de reconhecer, e melhor, de deixar a discussão em aberto, que apesar de sempre ter gostado de estudar desde pequena (acho importante reforçar o verbo gostar) os livros não tocam, não cantam, não me contam histórias, não me fazem sorrir, não me relaxam, não me divertem, não me permitem beber imperiais e comer tremoços ao mesmo tempo, roubam-me horas de culto à minha cozinha, não me deixam sequer que os leve para a praia, não gostam quando os partilho com amigos, não querem que me mascare no Carnaval, impedem-me de estar à mesa com a minha família mais que hora e meia, não me deixam dar os beijinhos todos que me apetece dar e mais uma série de coisas que, mais que a Medicina, me mantêm viva.

Mesmo assim, e declarando-me oficialmente mais morta do que viva, orgulho-me do meu palminho de testa, que me dói tanto nestas alturas, só porque sou muito mais um bicho de afectos do que um bicho de estudo.


Obrigado pela atenção. Esfolem-se para aí a comentar.



terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Impotente. Impotente. Impotente.

Passa-se alguma coisa. Tem de se passar.

Ainda ontem falei com uma candidata a fantasma, carequinha da quimioterapia, a depositar esperança redobrada num transplante medular para o qual ainda não há dador, no quarto e último ciclo de quimioterapia que a fez mudar a residência para um hospital com três letras assustadoras, uma sigla que arrepia, um I, um P e um O que impõem respeito. Três filhos pequenos que ainda não se apercebem da situação da mãe e um marido que me tem apoiado muito, mas é assim, só vomitei no início do tratamento, em Setembro, agora quase já nem sinto, dizia ela, agora é só esperar. E uma pessoa, que hesita entre as melhoras e o até amanhã, porque nem uma coisa nem a outra podem ser verdade num futuro próximo, pergunta pelo prognóstico ao curandeiro lá do sítio, que exerce o seu poder de visão do futuro com um berbequim que fura o osso (uma biópsia óssea é capaz de ser mais específica do que uma bola de cristal) e faz magia com esquemas protocolados de quimioterapia_ sem transplante é mau, com transplante é médio mau.

E saí, com o rabinho entre as pernas, a pensar que me apetecia mais estar ali do que fechada em casa a estudar para o exame da semana que vem. Ainda partilho umas opiniões com amigos, que é pesado, que é difícil, que não gostam. Que tenho saudades dos tempos de estudante, que me custa ir para o trabalho à segunda-feira. Pois eu preferia ir hoje mesmo trabalhar, e sei do que falo, não é tolice.

Hoje soltou-se mais um anjo. Sem ciclos de quimio, sem ameaços, fresco que nem uma alface. Chamava-me Catalina. Chateia-me isto do fanico e cair para o lado, principalmente por me sentir tão impotente. Porque me fazem engolir livros e decorar fenótipos das síndromes mais raras, quando não detectei uma das mais fáceis num corpo que conhecia bem. Porque enquanto penso porque é que o miudinho que é meu vizinho lá na aldeia vai fazer uma punção lombar, morre mais um, do nada.

Estou mais imune a más notícias. E estou a ficar azeda, o que me preocupa. Bem sei que não devia perder tempo a azedar-me, mas a sensação é semelhante a ler o último capítulo de um livro e estar-me a marimbar para os que me faltam, sejam muitos ou poucos.

Enfim. Com este "pequeno" conto pelo menos quatro anjos. Dois deles novinhos demais para tal cargo.