quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Carta Celestial

Cara Catarina,


Habitue-se à frequência da minha visita. Você tem dado uma grande despesa na verba celestial. Na verdade, todos os meus poderes de figura mágica alada se esgotam perante si.

Vendo-a mais encaminhada, não posso deixar de lhe fazer alguns reparos e de a preparar para períodos vindouros. Contudo, não se esqueça que a sua audácia e ousadia têm um papel preponderante na tomada de decisões e, a meu ver, e depois de conselho com colegas e entidades superiores, o que há em si é essencialmente falta dela. Dada a falta de tempo, que em período natalício o que não falta é almas para encaminhar, permita-me que enuncie um a um os aspectos que carecem de mais atenção da sua parte.


- A velha premissa_ não se iluda com as aparências. Penso que tem sido surpreendida todos os dias com a fatalidade do seu julgamento acerca do que vê. Tenho-me esforçado por isso. Seja mais flexível, dê uma segunda oportunidade, investigue, esgote as pessoas. E depois disso, esteja à vontade, faça o seu juízo (que é pessoa íntegra) e tome as medidas que achar necessárias.

- Aprenda a perdoar. Desde a buzinadela do taxista até às situações mais imprevistas e que lhe sejam mesmo dolorosas. Não seja tão intransigente, amoleça-se, molde-se às coisas.

- Acredite mais. Suprima o seu olhar científico e crítico, que nem tudo são neurotransmissores e há coisas que simplesmente não se explicam e somos nós que as detemos sob sigilo profissional. E sabe que mais? Você bem que se rende à falta de evidência de certas crenças. Deixe-se apaixonar.

- Ame. Faça o que costuma fazer bem. As pessoas sentem falta do seu amor. E faz-lhe falta, que eu bem sei, exalar esse perfume.

- Tire tempo para si. Passeie, faça desporto, canse-se ou descanse, ouça música, pense, extenue-se de vida. Faz-lhe falta, não faz? Eu bem sei!

- Reacenda a sua arte. à procura dela, onde quer que ela esteja. Faça-se amiga da paleta e do cavalete, escreva, leia, divirja. Não faça da sua mente um labirinto de portas fechadas, mas uma órbita de cometas.

- Seja mais como você é. Não lhe ensino. Esta é a única coisa que nunca se ensine. Você costuma ser bem.

Dito isto, dou a minha função como cumprida e espero sinceramente que se ponha na linha. E não é que seja materialista,mas veja lá se me oferece uma prenda de Natal. Estou a precisar de umas asas novas, que as minhas bem que têm sofrido com as suas desventuras.
Vá para a sua terrinha e tenha umas Boas Festas, que lhe faz falta os meios humildes, as pessoas simples e os mimos da mãe, não se faça de forte.


um beijo cheio de luz,


o seu anjo da guarda
P.S.: E não abuse no Bolo Rei!

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Toque de lábio a Álvaro de Campos

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas
-Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Natal alternativo



Rua escura, dia de trabalho cansativo, oito horas que a noite pesada escurecia e anunciava. Contradizendo relógio, contrapondo-me ao tempo_ o verdadeiro contra-tempo_ num compasso desorientado, diria arrítmico completo, no meu reggae de improviso tocado a resiliência, complacência e cansaço.


Dor nos pés acompanhada de rubor, edema, cansaço e desconforto. Início gradual no período da tarde. Piora com saltos altos. Refere ainda que tem uma sebelha que fugiu à tesoura do cabeleireiro a teimar escapar à mola que pregou à cabeça. Sebelha teimosa que por mais que ponha atrás da orelha foge e cai e sebelha malvada e já tirava os sapatos...e tou farta disto, quero ir para casa, tomar um banho quente e clicar no stand by. Tentem pôr uma vida numa história clínica. Sou mesmo um bicho limitado, temos pena.


E algures num recanto escuro um senhor ajoelhado (mas bem trajado) parecia agonizar e pedir ajuda.

E eu_ sebelha malvada e tou cheia de fome e sinto cada passo em cima destes 10 centímetros_ nem notei. E virei a esquina. E_ lá acordei para a vida_ o senhor estava mesmo a passar mal. Voltei para trás, juntando-me a um casal que se aproximava daquela rua também. E espantei-me por vê-lo já socorrido, num período de minuto e meio depois de ter virado costas.


Boa! Lisboa não é só Lis!



E a propósito (de nada), como passas o teu Natal? Contemplas, fomentas ou incrementas?







segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Leite com mel

Criança, admite que esse pingo no nariz, garganta arranhada e mau estar já te deu muito mais gozo. Que engraçado que era quando te passavam a mão pela testa adivinhando febre. Era sempre o mesmo ritual_ termómetro na axila, cobertor até às orelhas, beijinho. Ficavas no "ninho do passarinho"

_ É o ninho da passarinha Catarinha!
E depois, ora bolas, qual febre, qual quê!
_ Oh, mas eu sinto-me quente!

Não duvido. Com essas mantas todas! Agora somos anti-febre, não é bebé? Termómetro é alta tecnologia difícil de manusear e não tendo mimo e beijinho a coisa perde o encanto. Estás quente, refresca-te. Nunca gostaste tanto do senso comum. E agora também já não tens idade para brufen em xarope, é pena. Tenta procurar o sabor a laranja que adoça a garganta noutras coisas...
Talvez não seja só o sabor que faz falta. Quando ainda acordas de boca seca de fazeres aquilo a que chamavas respirar à peixe_ boca escancarada, nariz entupido, ranhoca e baba, que lindo cenário_ bem que podes levantar o rabinho da cama e preparar o teu leite com mel, curativo pré-cêgripe e ante-ida-ao-médico. Depois de muito lutar com a tampa do frasco aprendeste sozinha a destapá-lo debaixo de água quente. Não te adianta pores menos mel às escondidas, que a única coisa que irritas é a garganta. Não há ninguém a quem te queixes que está quente, que não gostas, que te dói, que não dormes, que queres companhia. Emborca mas é isso e, no máximo, puxa o portátil e vinga-te da vida. Esse sabor que em tempos fora intragável agora aquece-te a memória com os bons tempos que passaram. E bebe o restinho do fundo, que te faz bem, mando eu. Amanhã hás-de estar óptima, cheia de energia, de ténis que tu própria ataste, com um segura-apêndices-que-entretanto-te-cresceram-na-parte-ventral-do-tórax, phones que berram músicas diferentes das da Rua Sésamo, a correr os quilómetros matinais que te oxigenam o corpo e te fazem sentir viva. Belo substituto de mimos!

E agora faz-te ao sono, escorrega o rabo e enterra-te almofada abaixo. E cuidado com pesadelos e mau dormir_ quem faz a cama amanhã és tu, aviso-te já.

domingo, 7 de setembro de 2008

Dulcíssima

Certo décimo segundo, a sofrer a praxe que sofrem os estudantes deslocados, houve uma senhora Dulce, de doce, que me acolheu como uma mãe.

_ De certeza que nos vamos dar bem. Ela até parece sossegadinha e tudo! E já agora, menina, sabe porque é que me chamo Dulce? Porque sou doce!

E foi amor à primeira vista. Eram braços abertos ao Domingo à noite e abraços apertados à sexta à tarde. Ajudava-me a carregar as tralhas

_Tanta fruta menina!
_ Largue isso, dona Dulce, que não tem idade para essas coisas!

Contava-me como tinha sido o fim-de-semana

_ Sempre essa pergunta! Com esta idade já não há muitas coisas novas para fazer...E o seu?
_ As coisas boas de sempre_ família, amigos e almoço de domingo com direito a pudim de côco! Como vê também não inovo.

E deixava-me no meu quarto, a gerir a ideia de fazer tanta coisa pela primeira vez, com uma catarata que já esguichava desde o rés-do-chão ao segundo andar, depois lá se continha 5 minutos e rebentava assim que me sentia sozinha.

A Dona Dulce tinha um pequeno problema de audição. Na verdade ela tinha muitos problemas. Os pólipos no intestino,

_ Sabe, menina, aqueles cogumelozinhos?
(Na altura não sabia. Agora sei demais. E um dia vou-me fartar de saber.)

A voz nasalada porque não sei quê, a hérnia discal que lhe apanhava uma perna,

_ E esta, menina. Esta é a pior_ uma cicatriz a meio do peito_ bem que me tentaram roubar o coração! Mas esse não roubam.

De doce, de facto. Mas conversas nostálgicas era quando falava do seu marido, falecido há umas décadas.

_ Eu e o meu marido tínhamos uma boite. Mas uma boite de gente fina!

E mostrava-me os guardanapos de linho fino bordados, alguma loiça, algumas roupas, algumas jóias, alguns encantos... Dentro de armários velhos e bafientos, cada objecto lá tinha a sua história para contar.

_ Este coração deu-me ele nos nossos 25 anos de casados. E a colecção de luvas, menina!
(Sabia lá ela a minha tara por luvas!)
_ Estas são para usar à noite, estas de xadrez mais informais. Vejo que gosta! Escolha um par!

E foi assim o meu décimos segundo, pelo menos 10 minutos por dia. Deixei de ter o restaurante quatro (oito) patas aos dias da semana, para aprender receitas de bacalhau com natas e claras em castelo e cordon bleu da boite.

_ Um dia faço-lhe um arroz doce daqueles que não se comem cá em Lisboa!

E fiz! E gostou... E foi com papas e bolos que lhe ganhei a confiança. Não foi preciso esperar muito para vir perguntar-me o preço que devia levar às clientes por subir as bainhas das calças.

_ Ora, bainhas...
_ Já vi que não percebe muito do assunto!
_ Venha cá e veja isto!

No tempo em que eu ainda tinha tempo, fazia biquinis e bijutaria de renda.

_Ah, mas que rosetas tão bonitas!
_ Um dia faço-lhe uma bonita. Se não a puser no cabelo, guarde-a na carteira! E as bainhas...7 euros!

E a amizade tornou-se rotina, mesmo nos dias mais difíceis.

_ Filha, ficou acordada até tão tarde! Vi a luz pela janela do quarto.
_ Há-de servir para alguma coisa, Dona Dulce! Não tenha pena!

Ou no domingo em que vim com uma constipação e tosse arrancada do fundo dos pulmões.

_ Faço-lhe um xarope de limão com açúcar e uns emplastros de álcool no peito, esta noite. Diga-me quando se for deitar! Mas tenha dó de mim! Veja lá as horas!

Passados dois dias estava como nova...
Seguiram-se os exames nacionais

_ Está tão magrinha menina! Oxalá que lhe valha o esforço!

E passaram-se (alguns...) maus momentos. Que bom que a dona Dulce era quase surda e não ouvia algumas cataratas mais turbulentas. É que se me apanhasse em flagrante delito, faltavam-me ainda uns 70 anos para que as cataratas corressem para rios e os rios para riachos e riachos para canais e para pequenos fios de lágrimas que abrilhantavam a face, como a sua por detrás dos óculos pesados, fazendo caminhos por entre rugas de pele.

Não sei de si. Sei que aquele quarto sem estores e com o vento que entrava pelas frestas das janelas já não é seu. Provavelmente já não tem espalhadas pelas paredes as molduras com fotos do seu casamento, do casamento do seu filho, do baptismo do seu neto e da namorada dele (que talvez fosse menos neta que eu). Não deve ter as suas jóias, as suas luvas, os seus guardanapos de linho. E de certeza que se tocasse à campainha não me afagavam o cabelo e assim que virasse costas não correriam fiozinhos de luz pelas faces.

Um dia levo-lhe uma roseta de renda e ovos de galinhas de verdade, como fazia a cada domingo. Oxalá ainda esteja entre nós...

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Ode à insónia

Ó insónia desgraçada
Que vens de madrugada raptar-me de Morpheus.
Tirando-me a almofada e a boca arregalada beijando os lábios seus.
Tu que por esta chuva vieste e por este cinzento cipreste
Te entranhaste em mim. Com tua voz soprana
Roubando-me sofá e cama, esteira, cadeira, coxim.


E até no mais sadio sono e merecido descanso
Eu ouço o teu sonido
Abanando-me os tímpanos, dá-me cabo do caracol
E dos ossículos do ouvido.


Esgoto o stock da Lipton e a naturista da rua
Bate palmas quando entro.
São infusões "Boas noites", ervas daninhas sonoríferas
Sem parar, pela noite dentro.
E nem o mais potente xarope
ousa fazer-me bocejar!
A raíz de Valeriana e o placebo Valdispert é só para o sangue adoçar.

O que há aí de sedativo, antefiáltico, barbitúrico
Faz-me cócegas no pé.
Também já tentei com tinto, branco, verde e às bolinhas
E a garrafinha de rosé.
É este um grande nó cego
Que dou desde há muitos anos
e não ato nem desato.
Nem picada de tzé-tzé
Num dia de desespero
Em expedição pelo mato.

Nem o mais ranhento, lamechento, pardacento
romance ou tratado.
Já lá fui com triptofano, hidrato de carbono e banho quente,
E sempre o mesmo resultado!

Mas métodos tradicionais imperam
E há-de chegar o dia
Da bela da marretada.
E orgulhosa de mim,
Nem que veja passarinhos
é um desforro nu e cru.
E se tal não funcionar faltam-me ainda a bruxa
dança da chuva e o voodoo.

Aceitam-se voluntários para a marretada! Não vale empurrar!




quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Íssimo, íssimo cansaço


Fluem vidas ao sol. Evapora esperança, goteja coragem, poro a poro, arrefecendo humores numa película fria. Cenário ridículo, férias. Corpos mais vestidos do que nunca_ mais dissimulados, fantoches de um projecto de vida_ em tanga e cortininha, bamboleando a rabiola, exibindo peitorais besuntados com cremes pestilentos, massas animadas derretendo ao sol, qual bolo de pastelaria envolto de glacé.


"'Tou de férias, quero lá saber!", como se este "deixar de querer saber" fosse requisito número um para umas férias revitalizantes e bem merecidas. E descuram de tudo durante vinte e cinco dias úteis a que têm direito durante o ano. Como se tivessem de querer saber demais durante os restantes trezentos e quarenta dias. Como se lhes pesasse a responsabilidade.


Cresce em mim um infindável cansaço. Supremíssimo, íssimo, íssimo. De

querer
querer
furar
amolecer
picar
romper
limar.

E esta construção arrefece com o tempo, tornando-se cada vez menos moldável.


Pedra a picar pedra. Quem quebrará primeiro?


quinta-feira, 26 de junho de 2008

Sinestesias

"Toda a arte é perfeitamente inútil", cuspiu ditoso esse teu livro.


Foi como quem cospe uma coisa amarga, daquelas que magoam a consciência e picam na língua, ou magoam a língua e picam na consciência. Um pico de beleza, um pico de amor; um pico de tristeza, um pico de dor. A arte é feita de picos_ pica, repenica, crepita e levita_ a arte, minha amiga, somo-la nós.


A arte arrebata, maltrata e mata. Ergue-se connosco e afinca-se à pele, até que a podridão te consuma a carne. Não se pode negá-la, não se pode defini-la. Não a agarras, não a conservas, não a destilas nem refinas. E, na ironia da vida, arde-te a ansiedade de extorqui-la.







Eu sou, vou ser criminosa e amordaçar um sentimento, degolá-lo num beco escuro e expô-lo aqui, a quem passar. É sangrenta e cruel esta vontade desmedida de querer matar e mostrar. De querer imortalizar. Pedaços, pedaços belos ou facínoras, laivos gritantes e esfomeados que se alimentam de nós, exigindo o pagamento das prestações em atraso. Porque a arte dá mas também tira. Constrói e corrói, ergue e destrói, ela é o génio e o seu discípulo_ um génio despido, precoce, errante_ doce e imberbe glória, a dos intervalos fugazes.


Sê ousada comigo. Esvaiamo-nos em beleza até sermos só pó. Até decair e sucumbir ao êxtase. Extraiamos a essência, dissequemo-la, isolemo-la de impurezas para depois a servir numa bandeja fria, como vingança em estado puro. A mim não me dói. E a ti?
Eu não tenho medo.


No palmilhar incerto da arte e pela arte, na busca incessante e inconstante do além ter e do além querer, tu aqui me tens.
Sabes, como eu, que somos fruto proibido do incesto entre a exaustão e a criatividade. E tudo na vida tem o seu preço.


Paguemo-lo.
Escrito por Carolina e Eu.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Atitude


Rua acima, tropeçando na Fantasia Feminina_ Verão e elegância_ que se interpunha a cada montra de loja de roupa, farmácia e dietética, cruzando-me com um rio de gente, acne, obesidade, flacidez e gordura localizada. Para fora das montras tudo parece tão sórdido e mundano, tão diferente da actriz de sorriso brilhante, dos manequins de medidas pouco saudáveis!
Rádio, revistas e televisão apregoam a tão cíclica saga do consuma-emagreça-e-seja-feliz.


Minha querida, se o seu rabo não cabe num 36 não faça um buraco na alma. Mostre os dentes. O sorriso, esse, não lho cobram e vale bem mais a pena.


A beleza é uma questão de atitude.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Como num jogo de flippers

Lisboa, numa qualquer inspiradora aula de matemática, 2006


Alguém coloca a moeda por nós. E emergimos do nada, a medo ou confiantes, fitando o horizonte. Impulsiona-nos a vontade, uma espécie de mola accionada por uma alavanca que nos faz viajar por vários mundos, alucinar com as luzes, impressionar com o som, comover com a emoção, por quedas vertiginosas que abafam o fôlego, por subidas alienantes que inflamam a alma. E tudo vai ser um devaneio por entre luzes psicadélicas e sons que parecem ensurdecer, batendo aqui e ali, amealhando pontos sucessivamente ou perdendo-os cada vez que embatemos violentamente com um objecto.

“Pás!”_ o som seco dos ossos, o sofrer da pele, o barulho abafado pelo vidro da caixa, o eco que não pode ecoar, privado da razão que o faz ser. E com esta triste sorte o decréscimo de pontos e nós, bolas, vulneráveis à lei da gravidade, perdemos o equilíbrio. Se tivéssemos pés tropeçávamos, mas somos bolas_ o mais redondo e perfeito dos sólidos, tudo em nós é pi, tudo em nós são trezentos e sessenta graus ou dois pi radianos que nos fazem rebolar, ganhar velocidade e cair_ cair ou qualquer palavra mais forte, mais feia, mais despojada que não existe no dicionário e que eu não consigo inventar_ e acabamos num buraco escuro e à parte, num plano sob a nossa própria vida, noutra dimensão que não a realidade, mais sós do que nunca, até um novo accionar de alavanca, um novo impulsionar de mola.


Oxalá.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Jardinar ideias


Agora que o tempo está propício, é altura de jardinar. O sol estica os primeiros raios e as nuvens escondem uma ou outra lágrima (de felicidade, porque não queremos pensar em coisas más). Lisboa é uma pequena estufinha, cheia de tulipas encarnadas que desabrocham pelas ruas (no sentido gracioso) e os narcisos apenas dão fé de si, na sua mania narcisista (não apitam nem berram, dão simplesmente fé de si). Este clima ameno e ligeiramente bafiento (ninguém falou em efeito de estufa) e este UV-Cêzinho manhoso não me depelou, apenas provocou uma ligeira descamação da pele, isso a que chamam epitélio estratificado pavimentoso queratinizado lá há-de ser um nome bonito ou um elogio na língua de quem o inventou.

Fiz uma covinha na terra e lancei a semente. Cheira a chuva, a Inverno, mas hão-de vir aí dias amenos_ a bonança após a tempestade! E como cada um colhe o que semeia, a minha semente é das melhores. Nem uma brisa aqui passou, porque quem semeia ventos colhe tempestades, e se por acaso tivesse passado teria sido eu própria a ampará-la com a vida.
Depois o adubo orgânico, vulgo esterco (palavra agressiva para coisa tão singela), e tapa-se com terra outra vez. E aqui entram duas teorias distintas_ o regar ou o não regar. Regar porque é água e a água faz bem e o não regar porque iria humedecer a semente e isso ia aprodecê-la. Não reguei. Sou uma jardineira a sério.

E depois esperei. Todos os dias visitava a semente e lá depositava mais uma ou outra gota de amor, que lá havia de fazer alguma coisa aos cotilédonos. Além disso, amor é rico em proteína e noutras coisas boas que dão saúde. Mal não lhe há-de fazer de certeza!

E assim se semeiam ideias. Nem sempre germinam, nem sempre brotam com a mesma força, nem sempre desabrocham graciosamente cheias de cores. E que ideia melhor do que descrever a procura incessante de ideias enquanto não vem nenhuma? É uma alegoria interminável que muitos outros já fizeram, semelhante à caneta que teima em não escrever, à palavra que teima em não sair, ao orgulho-me dos meus dedos hoje serem chouriços teimosos que outros que se auto-intitulam escritores já relataram.

Mas eu não sou escritora nem nada que se pareça. Sou uma humilde jardineira que acabou, a meio da noite, de colher uma ideia-tipo-cenoura (só se vê rama, não se vê o que se come nem se sabe se é bom), num enregelado calçar botim e vestir casaco de quem procura algo, piscando os olhos e adivinhando as coisas entre o negro cru do quintal.

E esta é uma grande e amorosa alegoria feminina, com muito mais verdade e lógica do que se retira numa primeira leitura. É bonito usar saltos altos, ter o humor subordinado à sigla TPM e usar soutien. Soutien de soutenir, aquele verbo que rima com descair daqui a uns anos. Fantástico! Se a vida fosse um jardim (porque definitivamente e fora de brincadeiras não é) nós seríamos as flores mais bonitas do canteiro.

terça-feira, 1 de abril de 2008

"Mas ela não tem nem nunca terá 20 anos"

Não percebo onde está o problema de me atirar à vida como um cão com fome. A saltar-lhe para cima à mínima distracção, despedaçá-la, aproveitá-la até ao último farrapo. Eu cá não deixo migalhas nem sobras e não pretendo guardar nada no frigorífico para o dia seguinte. E quando se acabar a refeição, ora... espera-se por outra. Melhor_ vagueia-se meia perdida à procura de outra.

Não tenho sonhos, tenho objectivos. O último sonho foi ter sapatos pretos de verniz e passadeira, se bem me lembro. Sim, ficariam impecáveis com o vestido ao xadrez, aquele vestido "de princesa" que usava no Inverno. A partir daí só objectivos, objectivos atrás de objectivos. Entre procurar e despedaçar; entre a agonia de fome e enjoo de barriga cheia; num processo "tudo ou nada" que agora sei que existe e vem relatado nos livros; numa viagem intergaláctica até me cair o mundo aos pés. Terá sido esta a minha adolescência, o período radical?


A fobia a parques infantis enquanto preferia a plasticina e os lápis de cor; a aversão a discotecas enquanto rejubilava com uma conversa inteligente. Preferia peixe grelhado e Muralhas a Cheeseburguer e Cocacola; não emborcava imperial_ apreciava vinho do Porto; trocava o desligar da consciência por motivo do etanol por descobrir coisas interessantes em pessoas interessantes; não me iludia com a beleza evidente_ procuraria essa beleza onde toda a gente pensava que não existia.


A todos os que pensam ser radicais porque dizem yah e seguem as tão vulgares tendências, quando não souberem mais como hão-de ser diferentes tentem morrer com a maturidade pelo dobro da experiência.


Agora ponham-me um rótulo de anormal na testa.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Um tão só "paz-à-sua-alma"


No que respeita à corrupção, já por aí vi corrupções piores que aquela biológica e fétida putrefacção de tecidos, deterioramento, apodrecimento, decomposição. Aquela que acontece fruto e semente de vida, num oportunismo desenfreado de bichinhos mínimos e inocentes, numa competição espectacular por substrato.


"Vós sois o sal da Terra" e o sal, desde os primórdios, impede a corrupção. Com tanto sal neste mundo, toda esta podridão existe "porque o sal não salga ou porque a Terra não se deixa salgar". O ideal seria sermos frigoríficos uns dos outros, numa simbiose de quem não se quer deixar corromper. Mas isto é mera teoria que se impinge aos miúdos do secundário, naquela idade em que simbiose parece o lema de vida, qual líquen colado a uma árvore! "Ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites" e quem diz Cristo diz variadíssimas coisas, como bons valores. "Bons", no padrão normativo de uma pessoa normal. "Normal", adjectivo estúpido e sem sentido que devia desaparecer dos dicionários.


E sem querer transformar isto num diário para desabafos incompreensíveis, intraduzíveis e irresolúveis, é esta a última vez que falo deste assunto e fá-lo-ei num parágrafo apenas:

Leve Cristo ou qualquer coisa "boa" a senhora C, companheira das terças e sextas-feiras e também o senhor A, que às quintas-feiras se demonstrava atencioso e um pouco relutante para com o entusiasmo das alminhas de bata branca, excitadas e maravilhadas com as "porras" da Natureza. Sim, ela tem mesmo "porras".


E eu...eu hoje vou adormecer no ombro do Tempo e ficar feliz por perceber um pouco mais deste mistério que se chama vida.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Teatro Anatómico

Isto é só uma forma discreta de deixar escapar o brilho que o meu corpo empacota neste momento.
E falando de corpo, que coisa esta, que bilhete para a vida tão físico e efémero, tão mundano, tão fatal, tão fútil. Embelezamos, exercitamos, usamos, abusamos, matamos o corpo. Vestem o corpo, têm vergonha do corpo, vivem do corpo, admiram o corpo, desenham-no, esculpem-no e mutilam-no e maltratam-no e intimidam-no perante espelhos. E pelo corpo vivemos durante umas mãos cheias de anos e passada a sua validade, qual iogurte a fermentar naquele processo transparente e imperceptível de bactérias a proliferar às escondidas dentro de um frigorífico, esta máquina quase perfeita falha e morre. E azeda (e de que maneira).

Passada a sua validade, o corpo, jamais nosso, jamais de alguém, jamais alguma coisa, é mais um despojo morto da biosfera, qualquer coisa inerte e amorfa, muito amorfa, muito disforme, que já foi muito de alguém, que já foi muito importante, agora muito de um qualquer predador ou biodecompositor, muito de um outro ecossistema.

Talvez seja mesmo um fim nobre um último teatro_ um Teatro Anatómico. Esta é a forma de designar aquele espaço que, ora a cheirar a coelho, ora a cheirar a cadáver, ora a cheirar a formol, acolhe o estudante daquela ciência bonita que estuda o corpo. É um templo anatómico, um verdadeiro palco onde pedaços de nós ou daquilo que seremos quando passarmos da validade desempenham o seu último papel.


Continuarei a aplaudir...

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

SweeTeen


Dá-me uns phones e um mp3 e eu mascaro o barulho da cidade, dou a volta ao mundo de All Stars.
Rasgo o longe com passos largos, faço do caminho para casa maratona e ainda convido quem quiser a participar.
Corto metas e somo pontos, ergo os braços e não desisto. Não parou a música, eu também não vou parar.
As calças rotas e a moda a arrojar. Baterias e guitarradas. É para parar quando eu mandar.
Quem não sabe as maravilhas que um soutien de desporto esconde não sabe o que é viver. E os problemas muitos e irresolúveis, apertados na biqueira dos ténis hão-de caber. Assim há-de ser.
Atar os atacadores e andar. A música não pára, eu não vou parar.

TwenTEEN em Maio...