Hoje vigio o teu
sono. Sinto o teu peito a encher, acalmo os teus sonhos maus, aqueço-te. Sou
fria e sou do mundo, talvez corrompida pela sociedade moderna, mas encontrei a
minha pedra preciosa e protejo-a.
Sinto-me bem nesta espécie de nova dimensão que
conquistámos_ apartada das coisas terrenas, como que flutuando sobre a Terra,
uma parede pintada de Bem, outra pintada de Mal, uma parede às flores e uma
parede verde, uma porta grande aberta, sem tecto. O nosso sofá é de esperança e
o nosso soalho é flutuante, feito de confiança, que encaixámos ladrilho a
ladrilho. Não está perfeito...mas eu nunca me vi antes nestas obras e tu também
já lhe tinhas perdido o jeito. Pendurámos pelas paredes algumas etapas e lembranças,
boas e más, que nos trouxeram até aqui. Exibimo-las _ temos a certeza que não
seríamos os mesmos se não tivessem acontecido.
Esta casa era velha. Tinha fugas nos caixilhos das janelas,
por onde entrava vento. Havia destroços por todo o lado, resquícios de qualquer
coisa que o tempo corroeu, a água das torneiras pouco salubre, a cozinha impessoal,
baça e cheia de gordura, a sala bonita mas de um falso e aparente conforto. O
quarto era como um templo romano erigido em contraplacado velho, ordinário e
meio roído já, grandioso mas falso. As plantas estavam em sofrimento...se elas
falassem!
Andava à procura de casa...eu sou esquisita com estas
coisas e já me desiludi tanto que tive medo. Não sabia se esta casa me queria.
Não sabia se tinha mestria para endireitá-la mas algo me dizia que detinha um
grande potencial e que só precisava de um toque... meu! E assim foi_
lançámo-nos às obras. Nem sempre à mesma velocidade, pois grandes projetos (de
vida) exigem grande reflexão e aprendizagem e nós não contratámos cá engenheiro,
arquiteto, decorador ou raios que os partam. Não tínhamos alvará de obra nem
título de registo, foi tudo meio marginal e sem grandes consentimentos. A mim
bastou-me estar feliz contigo. E foram aos sacos de entulho, eu ensacava, tu
atiravas lá p’ra baixo, pró mundo...e os restos assim se despedaçavam e
voltavam ao que eram_ detritos do mundo. Limpei aquelas gavetas e prateleiras
todas de trastes, ensaiei mil e uma maneiras de organizar o espaço, arranquei
os tapetes, sei lá quem pisou aquilo, estavam gastos e cheios de ácaros. A casa
foi-se enchendo de luz. De quando em quando dava por uma ou outra
sombra...coisa que se foi resolvendo com paciência. Suámos muito, os dois. Edificámos
as novas paredes, de baixo para cima, incansavelmente. Tu que tens jeito, pintaste-as.
A tinta é de amor, antiga mas aguenta muito tempo...o tempo que nós quisermos
que aguente. O pessoal agora mete
aquelas tintas novas cheias de brilho e cheiro e coisas, tanta merda p’ra tapar
uma parede velha e podre, caras como o raio e passado algum tempo ficam tão mal
ou piores que o que estavam. Vicissitudes da tal sociedade moderna, onde
herculeamente me fiz mulher.
A casa está gira, agora. Está cada vez mais gira. Suámos
muito, investimos o que tínhamos e não tínhamos. Temos os bolsos vazios mas o
coração cheio. Temos visitas de amigos e família. Contámos com alguma ajuda das
pessoas que nos amam. É para isso que serve a porta grande aberta e a casa não
ter tecto: não há limites para o Bem que entra, não há limites para o Bem que
se cresce. Temos um quarto pintado de verde-água com flores na parede, cheio de
amor e mini-roupinhas que eu lavo (ou a avó!) e tu penduras no estendal. A
colcha é da bisavó, a manta feita pela avó, as flores feitas por mim...não é um
quarto rico, mas é um quarto cheio de amor.
Ela guarda-te,
também. Esteve a noite toda acordada. Senti-a na barriga, devias tê-la sentido
nas costas, tão pequenina e já percebe tantas coisas...Acordámos-te, que hoje é
um dia novo. Não preciso de muitas palavras para entender o que pensas. É bom
saber que sentes este conforto e que a panqueca te soube bem.