quarta-feira, 23 de junho de 2010

Vicissitudes de quartanista

Abateu-se sobre mim uma profunda consciência de fim de dia. Não é tristeza, nem mágoa, nem saudade. Uma profunda consciência e um ligeiro (não tão supérfluo quanto isso) cansaço. Hoje foi o meu último dia de estágio em hospital. Uma saga que começou a medo (e mal) no ano passado, e que continuou (de forma muito tenra) este ano, seguindo-se o resto do curso, o resto da vida nestas andanças.

Não querendo tornar este espaço um pseudo diário (pseudo) médico, e só porque esta mágoa/consciência/saudade ultrapassa o meu limar de excitabilidade criativa (que anda escassa)_ esta vida cansa-me, mói-me, desgasta-me, endurece-me, mecaniza-me, envelhece-me, faz-me varizes e celulite mas no fundo faz-me bem.

Porque este ano me conheci melhor, porque conheci melhor algumas pessoas, porque me dei mais a conhecer, porque conheci um pouco mais da realidade, da pobreza, da miséria, da doença, da saúde, da morte, do nascimento, da verdadeira felicidade e da verdadeira tristeza. A diferença está no saltitar e no arrastar. Umas vezes aos saltinhos nas crocs cor-de-rosa, outras vezes arrastando-me como se o estetoscópio pesasse mais do que o meu próprio corpo.

Por todas as alminhas que contribuíram para as histórias clínicas, pelos fantasmas que não se sabia como estavam vivos, pelas esposas ou maridos que levam a rigor o que juraram de estarem presentes na doença, pelas jovens que se apaixonam por rapazes com paralisia cerebral, pelas senhoras bem dispostas que põem óculos de sol quando lhes dizem que têm de fazer quimioterapia, pelos potesinhos de mel caseiro e queijinhos da serra e pelos feitos que os trouxeram, pelas senhoras muito doentes da idade da minha mãe e da minha avó (estava sempre a pensar nisto), pelos funcionários surdos-mudos e pela sua desenvoltura, pelos pais "primíparos" e pelo "faz-força-filha-mas-não-vou-olhar-muito-aí-para-esse-sítio!", por cada gravidez em cada casal infértil, pelas avós aos quarenta anos que dão a mão às filhas naquelas horas complicadas,

vale a pena.

Com a bata um pouco gasta na zona do rabo (paredes! e não cadeiras), uma técnica inigualável de segurar os telemóveis na orelha dos cirurgiões enquanto estão a operar, todo um conhecimento aprofundado em meias de compressão elástica e rituais e porcarias para a circulação, um passo ainda mais acelerado e muita manha com os botões da bata que devem ser abotoados (depois de ter levado com toda a espécie de fluidos), de barra de cereais num bolso e garrafa de água no outro, se é "aquilo" que eles fazem que é ser médico, gosto disto sim senhor!

Há mais disto em Outubro ou mesmo no Verão, num estágio de férias de consulta do adolescente, que deve ser o cúmulo da criatividade lírica!

1 comentário:

silvia rosa disse...

volta e meia, no meio do dia-a-dia as tuas palavras ressoam... acontece-me de vez em quando.