quarta-feira, 5 de março de 2008

Teatro Anatómico

Isto é só uma forma discreta de deixar escapar o brilho que o meu corpo empacota neste momento.
E falando de corpo, que coisa esta, que bilhete para a vida tão físico e efémero, tão mundano, tão fatal, tão fútil. Embelezamos, exercitamos, usamos, abusamos, matamos o corpo. Vestem o corpo, têm vergonha do corpo, vivem do corpo, admiram o corpo, desenham-no, esculpem-no e mutilam-no e maltratam-no e intimidam-no perante espelhos. E pelo corpo vivemos durante umas mãos cheias de anos e passada a sua validade, qual iogurte a fermentar naquele processo transparente e imperceptível de bactérias a proliferar às escondidas dentro de um frigorífico, esta máquina quase perfeita falha e morre. E azeda (e de que maneira).

Passada a sua validade, o corpo, jamais nosso, jamais de alguém, jamais alguma coisa, é mais um despojo morto da biosfera, qualquer coisa inerte e amorfa, muito amorfa, muito disforme, que já foi muito de alguém, que já foi muito importante, agora muito de um qualquer predador ou biodecompositor, muito de um outro ecossistema.

Talvez seja mesmo um fim nobre um último teatro_ um Teatro Anatómico. Esta é a forma de designar aquele espaço que, ora a cheirar a coelho, ora a cheirar a cadáver, ora a cheirar a formol, acolhe o estudante daquela ciência bonita que estuda o corpo. É um templo anatómico, um verdadeiro palco onde pedaços de nós ou daquilo que seremos quando passarmos da validade desempenham o seu último papel.


Continuarei a aplaudir...

3 comentários:

Anónimo disse...

Também pensei em coisas assim parecidas com as tuas.. a ideia de um corpo como embalagem ressoa.. O nosso eu veste o corpo, o corpo não pode ser o nosso eu.. ou pode?

É bastante mais confortante pensar que o Eu não existe só pelo corpo ainda que no fundo desconfiemos que assim seja..
Mas preferimos não ter a certeza..

E a nossa atitude face ao corpo.. Está a mudar? Se há algum tempo faria confusão imaginar-mo-nos neste ponto de bisturi em punho com lâminas por entre a carne e se hoje menos confusão faz.. Claro que faz parte do processo de aprendizagem e concordo absolutamente com ele. Mas só para analisar..
Se nos prepara como profissionais o que nos faz como pessoas?
Será a dessensibilização em si uma lição?



Escreves que te desunhas! Continua assim :)

Anónimo disse...

Toda a História da Humanidade se resume numa batalha incansável para vencer a Morte.
A Medicina, que muito amo, é talvez a última invenção do pobre Homem que pode sonhar mas não pode perder-se no tempo!
Quanto a mim, não se é Homem sem se vencer o estigma da própria Morte, por outras palavras, não se é Homem se não se vencer a luta que é a própria vida!

Continua, não desistas, é nosso o dever de mudar o mundo! Como médicos mas sobretudo como Homens...

Anónimo disse...

Eu consigo perceber a importância, a oportunidade, a necessidade de observar um corpo por dentro.

Consigo apreciar a nobreza com que alguém nos disponibiliza aquilo que de mais próprio possuiu na Terra.

Mas é como se alguma coisa tivesse quebrado dentro de mim, no primeiro dia que entrei naquele Teatro Anatómico,

um duro golpe de faca no meu lirismo mundano e,

olha, as pessoas um dia morrem e tu,
tu não poderás fazer nada.

Mas depois senti-me zangada pela prepotência com que nos julguei especiais e invencíveis e percebi que a magia nunca desaparece,

basta não deixar que ela desapareça.

Nós, os que ali estamos,
podemos tocar com mãos de vida no corpo que pertence à morte,

ressuscitá-lo na utilidade e no serviço que nos presta.

E depois perdi a vontade de chorar, porque o corpo é só um cantinho,

um objecto mundano para meras deslocações.

Pois quando o corpo morre o espírito continua a

fluir pela Terra
fluir pela Terra

e quando o corpo morre o espírito

procura algo
procura algo e
tudo o que ficou por
fazer

sarará um dia
sarará um dia e
tudo aquilo que mais desejáste

findará por vir até
ti.

E a medo venci a repugnância em prol da paixão,

a paixão de vir a fazer algo pelas pessoas, de perceber o lugar de cada um
no bolo indissociável do universo.

Não se pode sentir nojo daquilo que é natural,

quem sou eu,

para me sentir enojada do meu próprio interior?

Tudo isto no tempo de uma aula, enquanto à minha volta fervilhava o entusiasmo.

Foi nisto que eu pensei, percebes?

Às vezes gostava que não fosses minha monitora de anatomia.