Passa-se alguma coisa. Tem de se passar.
Ainda ontem falei com uma candidata a fantasma, carequinha da quimioterapia, a depositar esperança redobrada num transplante medular para o qual ainda não há dador, no quarto e último ciclo de quimioterapia que a fez mudar a residência para um hospital com três letras assustadoras, uma sigla que arrepia, um I, um P e um O que impõem respeito. Três filhos pequenos que ainda não se apercebem da situação da mãe e um marido que me tem apoiado muito, mas é assim, só vomitei no início do tratamento, em Setembro, agora quase já nem sinto, dizia ela, agora é só esperar. E uma pessoa, que hesita entre as melhoras e o até amanhã, porque nem uma coisa nem a outra podem ser verdade num futuro próximo, pergunta pelo prognóstico ao curandeiro lá do sítio, que exerce o seu poder de visão do futuro com um berbequim que fura o osso (uma biópsia óssea é capaz de ser mais específica do que uma bola de cristal) e faz magia com esquemas protocolados de quimioterapia_ sem transplante é mau, com transplante é médio mau.
E saí, com o rabinho entre as pernas, a pensar que me apetecia mais estar ali do que fechada em casa a estudar para o exame da semana que vem. Ainda partilho umas opiniões com amigos, que é pesado, que é difícil, que não gostam. Que tenho saudades dos tempos de estudante, que me custa ir para o trabalho à segunda-feira. Pois eu preferia ir hoje mesmo trabalhar, e sei do que falo, não é tolice.
Hoje soltou-se mais um anjo. Sem ciclos de quimio, sem ameaços, fresco que nem uma alface. Chamava-me Catalina. Chateia-me isto do fanico e cair para o lado, principalmente por me sentir tão impotente. Porque me fazem engolir livros e decorar fenótipos das síndromes mais raras, quando não detectei uma das mais fáceis num corpo que conhecia bem. Porque enquanto penso porque é que o miudinho que é meu vizinho lá na aldeia vai fazer uma punção lombar, morre mais um, do nada.
Estou mais imune a más notícias. E estou a ficar azeda, o que me preocupa. Bem sei que não devia perder tempo a azedar-me, mas a sensação é semelhante a ler o último capítulo de um livro e estar-me a marimbar para os que me faltam, sejam muitos ou poucos.
Enfim. Com este "pequeno" conto pelo menos quatro anjos. Dois deles novinhos demais para tal cargo.
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
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7 comentários:
Gostei. Não sei o que dizer mais, que as palavras são poucas para descrever aquilo que a vivência das coisas nos traz. Incomparavelmente mais - e mais difícil, e muito mais interessante, ainda que duro - do que todas as páginas de todos os livros que nos obrigam a estudar anos a fio. Desculpa. Gostei. Não consigo dizer nem mais uma palavra.* (às vezes, na minha dimensão, sinto exactamente o mesmo*)
obrigado :)
acho mesmo que as palavras são poucas para certas coisas.
um beijinho :)*
Se tu estás aqui,
então o fantasma deixa de estar só.
E é tão importante para o fantasma,
o sentir-se acompanhado!
O muito que fazes é o pouco que te parece, mas afinal fazes tanto!Os teus olhos reparam, a tua boca denuncia, o teu cérebro prende-se,
impotente mas NUNCA indiferente!
E quem é que pode ficar indiferente à tua presença, à tua forma de estar, de dizer, de escrever, de falar?
Quem é que pode ficar indiferente à tua maneira de ser?
Porque tu tornaste tão mais saborosa a vida dos fantasmas que foram, dos que ficaram, dos que estão e são de carne e osso no aqui e no agora! A quantos valeste e a quantos vales!
És o meu raiozinho de sol.
Uma beijoca do coração.
Bela descoberta o teu blog ;)
Este post revela o que nos acontece invariavelmente, com estocadas sem aviso. Por mais que estudes, por mais que saibas, por melhor que sejas, "eles" morrem que nem tordos, com e sem justificação, novos, velhos, boas pessoas, más pessoas, e a nossa influência tem ou pode ter valor, mas temos pouco poder sob o desígnio mais forte da programação biológica....
Beijinho e continua a escrever bem, que é uma coisa já rara...
E assim até fiquei com vontade de lançar um post no meu esquecido blog! :)
"Quando nascemos apenas temos uma certeza: um dia vamos morrer". Esta foi uma frase que aprendi em Taizé e que em algumas situações me reconfortou. Se é justo ou não, isso não sei, mas é uma certeza...
Os anjinhos que viste partir agora estão melhor, num local sem dor nem sofrimento.
Tens de continuar a olhar em frente, a estudar e investigar maneiras de poder ajudar outros anjinhos. Levanta sempre a cabeça e nunca desistas do que acreditas. Nunca deixes de acreditar em ti e no teu trabalho.
Beijinho grande
Obrigado, Ana...
Ana...Maria, Isabel?!
Beijinhos
Ana Morais
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